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o apocalipse dos trabalhadores, do Valter Hugo Mãe

(6 de março de 2020)

Javier encontrou iste livro em Setúbal, á umas quatro semanas, no começo de fevereiro, numa livraria da parte antiga. O livro tem um título muito sugestivo e comecei a lê-lo no mesmo dia.

A capa pode causar confusão, pois diz que Valter Hugo Mãe é vencedor do Prémio Literário José Saramago, mais eu pensei que ele recebeu o prêmio por este livro, mais recebeu-lo em 2007 por "o romance o remorso de baltazar serapião", prêmio que recebeu do próprio José Saramago, quem considerou um verdadeiro tsunami literário: "Por vezes, tive a sensação de assistir a um novo parto da Língua portuguesa".

Não obstante o anterior, a verdade é que os prêmios não me parecem importantes e lê-lo com muito prazer.

É um livro comprometido, que conta a história de umas mulheres-a-dias de Bragança, a Maria da Graça e a Quitéria, e também de o Andriy, um migrante de Korosten (Ucrânia) e a sua familia. De fato, uma das passagens que escolhi para trazer aqui é a despedida da mãe de Andriy em Korosten, na estação de comboios.

"a ekaterina foi levar o andriy ao comboio que lhe roubaria o filho para kiev. comprou com ele o bilhete e perguntou-lhe mil vezes se levava as indicações do avião com que sairia depois do país. o andriy respondeu mil vezes que sim, que estava tudo bem e que correria tudo bem, levava o pouco dinheiro repartido pelos bolsos e pelas meias e prometia regressar em breve. a ekaterina via partir o filho como se entrasse pela terra adentro morrendo e não havia como consolar-se de sentir o corpo dele afastando-se do seu. não choraria mais do que o razoável, porque era imperioso que ele conseguisse fazer aquela viagem e se mantivesse corajoso para um tão importante momento da sua vida. mas não deixaria de entrar em colapso, quando o comboio virasse lá mais adiante e o andriy não a pudesse ver e não tivesse como saber que cairia sobre as pernas, tão sozinha e aflita na korosten subitamente devastada para si. o comboio saindo e ela pensava ver os seus braços crescendo como elásticos acompanhando o ar quase assustado do filho, com aquele comboio seguia o seu próprio corpo e a distância não haveria de rebentar tal elástico, pensava ela melhor, vais ser sempre o meu querido filho, andriy, e vou sofrer pela tua ausência como só sentirei felicidade quando souber que estás bem" (p. 39).

Como agora moro em Portugal, mesmo que por apenas seis meses, e não sei falar português (estou aprendendo pouco a pouco ...), gostei de ler esta passagem do livro. Aprender um idioma quando adulto é complicado, cansa de tentar articular novas vogais! Os migrantes têm múltiplas dificuldades, começando pela pobreza, mas também sofrem com o mal-entendido de outras pessoas com quem compartilham classe social.

"depois ficaram caladas, pensavam com mais sensibilidade e voltavam atrás. era certo que o andriy vinha de longe e, incapaz de falar bom português, acabava por lhes parecer substancialmente mais inapto do que seria, como se fosse sempre cómico, mesmo quando necessitado de ser sério, perdendo tanto a possibilidade de convencer os outros sobre a seriedade dos seus assuntos como, sobretudo, da inteligência do seu pensamento. o quê, perguntava-lhe a quitéria. que falar uma língua que não é a nossa, que ainda mal dominamos, nos obriga a parecermos tontas, muito menos inteligentes do que na verdade somos, e a outra pensou um pouco, não havia nunca colocado a questão de saber se o amante seria particularmente inteligente. para ela, ele estaría bem assim, mas era revolucionário ponderar as coisas daquela maneira. se o andriy falasse um português perfeito, e perfeitamente o entendesse, o que lhe diria a ela, bastar-se-iam ao acerto da compra dos preservativos e ao estarem de pé ou deitados no momento do sexo, ou seria possível que ele lhe preguntasse solenemente sobre os seus sonhos, ou lhe explicasse importantemente a grande fome ucraniana dos anos trinta do século vinte" (p. 45).

E uma menção, bastante irônica, à revolução dos cravos...

"e achas que portugal é um pais bonito, sasha, perguntou a mulher, claro que sim, é lindo. sabes, são lindos todos os países com um povo delicado, e em portugal, amor, fizeram uma revolução com flores. tens a certeza. absoluta. puseram flores nas armas e conquistaram a liberdade. a ekaterina fechou os olhos por uns instantes, e mesmo tão rente à loucura do sasha acreditou num portugal justo, onde o seu filho estaria bem, fazendo amigos, trabalhando para um futuro belo" (p. 79).

Gostei muito do livro, tanto pelas formas literárias quanto pela maneira como aborda os diferentes temas. Gostei menos de algumas partes, mas é um livro altamente recomendado.

Deixo aqui o booktrailer de Lucas, na sua conta de Youtube "Palabras de Lucidez", que conta um pouco mais do livro do que eu:




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