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A vida nas tasquinhas

Restaurante Rato Bicho - Évora
Restaurante Rato Bicho (Évora). Fonte: Gmaps
Diz Joaquim Pais de Brito (1919) que "a taberna/mercearia da aldeia tem sido muito irregularmente e, com frequência, acidental ou indirectamente tratada pela literatura antropológica".

"É indissociável a frequentação da taberna/mercearia da própria familiaridade de trato com o seu dono, da sua simpatia e do seu posicionamento no âmago das relações sociais de que todos os vizinhos (de ambas as aldeias) participam, assim como do seu papel de intermediário com o espaço regional mais amplo em que a aldeia se insere (...) Mas para além desse traço de homologia que resulta da sua inserção local partilhando memórias comuns, o dono da taberna exercita uma permanente postura de neutralidade face a todos os outros que são seus clientes, mantenha ou não com eles, a título particular, relações de amizade, simpatia, antipatia ou distância. É desta relação entre taberneiro-vendedor e cliente-comprador que lhe advêm saberes e segredos que resultam dos actos de compra em si mesmos —sempre feitos com extrema discrição, tendendo ao ocultamento perante os outros do que cada um à taberna vai comprar— como de uma avaliação mais próxima da situação conjuntural em que se encontra cada casa pelo volume dos gastos e por outras relações diádicas que podem traduzir-se em empréstimos em dinheiro, pedidos para tratar algo na vila, etc.".  

Embora Pais de Brito tenha investigado tabernas/mercearias de aldea, algumas características que ele menciona permanecem nas adegas e tasquinhas ainda vivas nas vilas e cidades.

São importantes pontos de encontro onde as pessoas falam sobre suas vidas e da vida, promovem a sociabilidade, facilitam a comunicação e mantêm a coexistência em divergência. Pode haver disputas, que geralmente são resolvidas coletivamente, em que todas as pessoas presentes se sentem questionadas e participam do que está acontecendo, sem deixar todo o peso da convivência nas mãos do proprietário.

Embora em várias tasquinhas alentejanas tenhamos visto que as mulheres continuam entrando, é verdade que existe uma diferenciação de gênero e são socialmente consideradas "lugares dos homens"; então, há mulheres que não vêm por medo de serem desaprovadas. É possível que isso seja resultado de um processo complexo, mas devo dizer que não sinto que as pessoas que estão nas tasquinhas fiquem mal quando eu entrou, mas, ao contrário, ficam alegres por eu participar como mais uma pessoa.

Em muitas tasquinhas, a comida é compartilhada no almoço, seguindo as formas de relacionamento das casas de pasto, servindo-se cada pessoa da "sopa de cozinha". É uma maneira de horizontalizar os relacionamentos, que ninguém serve ou é servido.

Restaurante Rato Bicho (Évora). Foto de Francisco Santos (gmaps)
Caracóis no Snack-bar O Pastor (Évora) (gmaps)
Também nos aconteceu em vários que chegamos, sendo notavelmente visitantes (não habitantes), e desde o primeiro momento alguém nos ofereceu o que eles estavam compartilhando (chouriço, queijo ...). A idéia de compartilhar o que há está muito presente, porque as pessoas que moram nesses lugares conhecem as privações e a necessidad.

A Cultura Também Passa Por Aqui. Momentos de convivio (1 de julho de 2019)
Poesia no Restaurante O Rato Bicho (Évora)

São lugares onde as pessoas cantam, compartilham conhecimentos, culturas, experiências ... e que o Estado e o Mercado estão determinados a menosprezar e apontar como inculturais porque são economias populares não capitalistas. Pudemos constatar que as tasquinhas estão ameaçadas no Alentejo, na Andaluzia e no País Basco, devido a regulamentos muito difíceis de aplicar e a processos de turistificação muito agressivos.

Cervejaria O Penalty (Évora) (gmaps)

Snack-bar O Pastor (Évora) (gmaps)

Aqui vemos dois exemplos de tasquinhas onde são vistas as formas de relacionamento nas quais o cante surge: cante alentejano e cante flamenco.




Referência bibliográfica

Pais de Brito, Joaquim (1991). A taberna: lugar e revelador da aldeia. In Brito, J. P. d., & O'Neill, B. J. (Eds.), Lugares de aqui : Actas do seminário «Terrenos portugueses». Etnográfica Press. doi :10.4000/books.etnograficapress.1884
https://books.openedition.org/etnograficapress/1884

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